A MENINA DAS ÁGUAS
A MENINA DAS ÁGUAS
Histórias e estórias se contam por estes rios, que se enredam na imensa Amazônia como se fossem artérias sangrando água, em todos os tamanhos de volume e extensão. A bacia amazônica assemelha-se a um tecido orgânico, com vasos pulsando vida, oxigenando e levando alimento à enormidade de sua extensão. Ao olhar leigo é possivel dizer que a maior floresta tropical do mundo talvez seja inteiramente água. Água de pequenas fontes que borbulham no seu solo arenoso e úmido. Água em córregos, riachos e igarapés, à distancias de poucos passos uns dos outros. No próprio ar que se respira da para perceber a constante dessa presença líquida. Seu clima é de umidade pesada, e tanto que é possível sentir sua companhia quando caminhamos entre suas pilastras lenhosas, sustentando telhado infinitamente verde. Muita água. Água de um regime de chuvas atordoante e ininterrupto. Água armazenada em raizes. Águas em cipós. Água. Água. Água. O elemento natural, vassalo do reino do verde. Um verde que cansa e perturba como o branco do gelo das regiões glaciais.
Algumas estórias sempre trazem em si um componente comum que é a própria natureza, de onde as lendas populares retiram seus principais personagens originados do medo e da insegurança constante. A Amazônia em si é repleta de mistérios por todos os lados, onde a vida e a morte são fatos nem mais nem menos corriqueiros como sol e chuva, noite e dia. Nela todo ser vivente sabe que talvez não esteja respirando na próxima hora porque em um átimo pode ser transformado de caçador, em alimento. Nela, como em qualquer lugar, a fome é uma caracteristica comum a todos os seres vivos, e singular dessa imensidão verde. A Amazônia é um bioma que consome a si próprio e reaproveita tudo para preservar sua química e seus minerais básicos. Um projeto perfeito, criado para se perpetuar por milhões de anos, onde nada se perde e tudo se transforma. Seu único empecilho é a desmedida ambição humana. A Amazônia se recria, desde que não sofra a intervenção da rapinagem humana, que depreda desnecessariamente. Se agisse como a natureza o homem saberia que o manejo correto, muito bem permite o uso desses recursos e insere o ser humano na própria natureza como parte integrante dela.
Na amazonia se morre fácil, ou por fome ou por defesa. Mas a morte por agressão ou predação nunca é gratuita. E esta é a lição mais digna desse inferno verde: nada morre por morrer, e tudo o que venha a falecer por causas naturais ou luta pela vida, transmuda-se na força de outras espécies que precisam da morte pra continuar vivas. Assim, viver na amazonia é viver em alerta constante. Cada árvore é uma armadilha a carregar peçonhas ou tocaias de dentes afiados e famintos. Cada vão ou abertura de qualquer tamanho nos madeiros mortos caidos em meio a sua intrincada composição de cipós, árvores e inúmeras espécies vegetais, pode significar o fim a todo vivente que se aventure por ela. Ataques precisos vindos desde minúsculos batráquios, repteis e aracnídeos até grandes animais carnívoros, serpentes venenosas ou constritoras, que raramente falham na sua especialização da morte.
Daí é que sobrevêm todos os mistérios e lendas desse povo. O constante perigo que o cerca é o fator responsável por essa imaginação fértil que amplia a realidade dos seus riscos, formatando outros seres surpreendentes, como se já não bastassem os inúmeros inimigos naturais de suas lidas diárias.
É o caso do caso que conto.
Caso que traz um desses personagens fantásticos, que na extensão magnífica dessas estradas de águas é lembrado aqui e ali pelos moradores ribeirinhos. Para contá-lo, tomo de favor os préstimos de Belmiro Bonfim, alcunhado de “boca”. Um mameluco prosa, moreno e forte, conhecedor das manhas e artimanhas das matas e dos rios, de onde tira o sustento e iguarias de sabor refinado ainda desconhecidas por esse Brasil afora. Tomo os favores e as palavras, que do “boca” saem calmas e corrediças como as águas que nos passam à frente.
Conheci Belmiro após aportar no seu pequeno povoado ribeirinho, durante longa viagem de pesquisa e conhecimento por essa amazonia afora. Enquanto os companheiros da jornada cumpriam suas missões nas mais diversas intenções científicas, uns catando sementes, outros vegetais e outros ainda aprisionando mosquitos para posterior estudos, eu catava estórias. E catei muitas. E tantas que me permito selecioná-las e repassar apenas as mais saborosas.
Já passava das cinco da tarde quando desci com Belmiro para a pequena praia fluvial onde havíamos aportado o barco no dia anterior e onde ele prometera relatar a surpreendente estória da menina das águas. Para descer a barranca era preciso cuidado, pois o caminho, além de íngreme, era feita em terreno umedecido, ora terra molhada, ora pedras cobertas de limo verde e extremamente escorregadio. Como única segurança, um improvisado corrimão, completamente bambo, feito de estacas verticais e ripas horizontais. A um pequeno descuido , queda na certa. Um tombo cheio de riscos, cerca de cinco ou seis metros abaixo.
Quando chegamos ao nível do rio o cenário era de uma beleza indescritível. O sol ainda inteiro e vermelho já descia lentamente esperando apenas que a lua lhe rendesse o turno. Nuvens espargiam manchas de tons alaranjados, vermelhos e púrpura como uma imensa obra de arte, ricamente pintada sobre um tecido azul. Por entre algumas era possível ver fachos de luzes retilíneos como spots gigantescos, a iluminar esse diáriamente diferente show do ocaso amazônico. Um pôr–do-sol belíssimo que nos remetia a uma contemplação calma e silenciosa. O espetáculo se estendia para dentro do rio onde, vez por outra, víamos um dorso de boto a corcovear sobre as águas, ou um peixe saltando desesperado para fugir de algum predador.
Éramos apenas nós nessa imensidão. Eu, Belmiro e a natureza no esplendor de sua festa. Enquanto ela executava sua maravilhosa performance, apenas nos cabia a visão e a admiração, sem que fosse pronunciada uma só palavra. Ficamos assim algum tempo, mudos e quietos, apenas mexendo os pés na areia quente e fina da praia do rio. Quando a borda inferior do grande astro já roçava a mata verde, Belmiro iniciou o seu relato, devidamente acomodado ao meu lado em um tronco sem vida, mas ainda cheio de dignidade.
De repente Delmiro resolve falar sem antes colocar em prática um cacoete que o acompanha desde criança. Sem aviso prévio ele introjeta os lábios dentro da boca mordendo os dois. Logo em seguida os solta fazendo um ruído de bolha estourando. Esse deve ser o porquê de sua alcunha de boca.
Eis a narração de Delmiro.
“ ...pois faça atenção seu moço” disse ele enquanto tirava um cigarro da aba da orelha...
“...vou contar apenas porque o amigo parece pessoa séria e diferente dessa gente que por aqui chega, ouve nossas conversas e saem a caçoar por aí afora”. Delmiro para um pouco, bate o cigarro na unha do polegar e o leva à boca. Para buscar o fósforo dentro da algibeira foi preciso inclinar o corpo até encostar em mim o seu braço nu e sem camisa, deixando perceber nesse simples toque a massa muscular poderosa que os remos, os facões e os machados haviam lhe proporcionado.
Aceso o cigarro e entre baforadas, Belmiro continua sua narrativa.
“...primeiro é preciso que o moço firme os olhos naqueles troncos retorcidos da outra margem, onde o rio faz um remoinho e depois inicia seu caminho lento rumo àquela curva pra direita...
...pois foi exatamente lá que se deu o meu único encontro com a menina das águas.
Vinha eu remando contra a correnteza, que por aqui não é tão mansa como parece, quando me deparei com a criatura. Uma morena que era um deslumbramento, com aparencia de não mais que vinte anos e panos rotos porem limpos a lhe cobrir o corpo e as partes. A porção de cima do que vestia era de um tecido azul e transparente e brilhava refletindo o sol do meio dia. O que impressionava era o que se escondia por baixo dele. Pois seu moço, eram os seios mais lindos que já vi, se comparados a qualquer beleza que meus olhos já tenham visto. Saltavam do corpo com atrevimento e terminavam em bicos carnudos que queriam porque queriam a liberdade tolhida pela blusa: o tal pano azul e brilhante apenas amarrado na nuca e nas costas um pouco acima da cintura. De vestido usava outro de cor muito branca, cuja textura se assemelhava aos tecidos de ensacar o açucar, também amarrado toscamente na cintura. Era uma mulher linda. Seus cabelos eram negros e brilhosos como os das índias e um par de olhos azuis pareciam o céu em dias quentes e sem nuvens. Daqueles em que a natureza vaidosa se faz mulher e se maquia inteira para chamar nossa atenção. Pois ficou a pergunta: de onde uma morena dessas, com a pele achocolatada das índias teriam conseguido olhos assim? Mais tarde fiquei sabendo. O moço vai saber tambem quando terminarmos nossa história.
Pois bem, a moça ao me ver pareceu tomar um susto e fez menção de se levantar de onde estava sentada .
_Venho em paz -gritei da canoa - e apenas paro porque nunca estes olhos viram tanta formosura.
A menina das águas esboçou um leve sorriso e permaneceu imóvel com seus olhos perdidos no tempo.
_ Posso me achegar apenas com a tenção de nunca mais esquecer este dia?
Perguntei esperando um fria negativa.
_Pois se achegue e se sente. Mas se comporte. Não se fie muito no que os vossos olhos estão vendo.
Eu juro a vosmecê que não entendi essa parte. Mas do jeito que foi dito, foi ouvido e esquecido, pois a atenção deste caboclo estava voltada para a mulher mais pefeita que já se viu. Após ter dito isso a moça voltou novamente à contemplar as águas do rio e ficou assim até que resolvi quebrar o silencio.
_ O que a moça olha tanto nessas águas sujas próprias dos tempos das cheias?
A resposta soou como poesia de tão linda.
_ Águas nunca se sujam amigo canoeiro. Elas levam terras e alimentos para outras paragens. É isso o que o forte mateiro chama de sujeira. Mas preste muita atenção nas nuvens que circulam sobre vossa cabeça. Vez em quando a água sobe até elas e lá tomam seu banho divino e retornam novamente limpinhas a cumprir sua missão de vida.
Ela olhou para o céu e eu olhei tb. Nesse momento seu moço uma chuva suave caiu sobre nossas cabeças. Eu senti ums arrepios estranhos e a criatura percebendo o meu medo me acalmou:
_ Se assuste não. A chuva que caiu, caiu mansa e se caiu mansa é porque é do bem. Mal não há de fazer.
Nesse exato momento umas quatro dezenas de botos surgiram no rio e se levantaram como em filas militares e com o corpo todo fora da água, ficando assim perfilados por uns 10 segundos. Outros bichos também se uniram a esse estranho cortejo. Quatro ou cinco “pintadas” sairam das matas, e através das águas pude ver o dorso de imensas gibóias ziguezagueando por entre os botos. Pareciam soldados a aguardar uma ordem de ataque.
_ Seres das águas e das matas continuem suas sinas. Aqui tudo é paz- disse a moça.
Ao dizer isso a guarda animal se desmanchou por completo e em um piscar de olhos tudo voltou ao normal.
Medo não define exatamente o que se passou pelo meu corpo e pela minha cabeça. Era pavor, era cagaço, era uma covardia sem limite. Eu não imaginava como tais fatos chegariam ao fim, mas presumi que havia caido em uma das grandes armadilhas do caapora e que meu corpo a qualquer momento estaria sem vida, depois de ser esquartejado e humilhado por tanto poder.
Mas não. O fim desse encontro foi suave. A menina das águas pegou a minha mão direita e invadindo minha alma com aqueles olhos que pareciam feitos de pedra preciosa disse calmamente:
_A partir de hoje acredite no que seus olhos não podem ver. E com essa fé ajude a preservar essa maravilha que Deus entregou a todos. Não permita, canoeiro, que os inimigos da natureza estraguem com suas ambições tudo o que a mãe natureza levou milhões da anos para construir. Prometa isso...
A palavra “prometo” saiu balbuciada destes labios que no momento estavam pálidos e trêmulos.
As últimas palavras da menina das águas foram:
_ Agora eu me vou. Preciso cuidar do meu destino.
Em seguida desapareceu como se nunca houvesse existido.
Seu moço, quando terminamos o encontro eu corri como o diabo para a canoa e remei tão depressa que quando dei de fé já estava encostando bem aí na nossa frente com o coração saindo pela boca. E olhe que daqui até a curva do rio são quase mil metros e posso garantir que não vi nenhum deles passando por baixo de minha canoa, enquanto remava.
Aqui Belmiro faz uma pausa na história. O seu semblante mudara totalmente. Do moreno safo que a mim fora apresentado por alguns moradores do local, nada restou. Seus olhos estavam hiperativos movendo-se rapidamente de um lado para o outro, parecendo querer ver todos os ângulos ao mesmo tempo. A aparência do rosto mostrava um estado de tensão e tristeza, querendo caminhar em pouco tempo para o chôro. E foi exatamente o que eu vi. Lágrimas brotaram dos seus olhos e nesse momento suas mãos cobriram suas faces num ato de preservação de sua dignidade. Seu tronco curvou-se até a cabeça se encaixar em meio às suas pernas. Delmiro não queria que eu participasse desse seu momento de fraqueza.
Eu esperei com calma até que a explosão terminasse.
_Se acalme Delmiro. Uma história com boniteza assim não pode terminar em choro- a frase me saiu sem pensar e como um tiro pela culatra provocou uma reação inesperada no canoeiro....
_ Não pode amigo meu? Não pode? O coração que bate no meu peito não é o que bate no seu. E as tristezas que ele sente não poderão jamais ser sentidas por vosmecê. Aqueles olhos seu moço me perseguem desde aquele momento.- continuou Delmiro-. _ Eu os vejo me espiando por traz dos grandes troncos da mata, enquanto preparo minhas armadilhas de caça, nos meus sonhos ...a cada segundo da minha vida. Nada faço sem que eles estejam presentes.
_É amor Belmiro? Perguntei querendo retirar dele mais emoções ainda.
_E não é amigo velho? O visitante aí não sabe do que são capazes os espíritos bons e maus que vivem vagando pela floresta...Belmiro disse isso com um ar resignado, querendo mostrar o sofrimento que os habitantes das matas enfrentam.
Eu preferi o silêncio. Ficamos assim por longo tempo até que toda a emoção se esgotasse do semblante de Belmiro. E quando percebi que tudo voltou à calma perguntei:
_ E os olhos azuis Belmiro?
_Essa é a outra parte da história seu moço. Conto amanhã. A cara metade deve estar terminando a janta e se dana se não chego no tempo certo.
Gostei da idéia.
No nosso barco já haviam me dado sinais da bóia pronta, coisa que o meu estomago já vinha fazendo a algum tempo com a fome que a natureza provoca. Marcamos o início de nossa conversa para o começo da manhã seguinte, nos despedimos e Belmiro subiu novamente o barranco rumo à sua casa.
Histórias e estórias se contam por estes rios, que se enredam na imensa Amazônia como se fossem artérias sangrando água, em todos os tamanhos de volume e extensão. A bacia amazônica assemelha-se a um tecido orgânico, com vasos pulsando vida, oxigenando e levando alimento à enormidade de sua extensão. Ao olhar leigo é possivel dizer que a maior floresta tropical do mundo talvez seja inteiramente água. Água de pequenas fontes que borbulham no seu solo arenoso e úmido. Água em córregos, riachos e igarapés, à distancias de poucos passos uns dos outros. No próprio ar que se respira da para perceber a constante dessa presença líquida. Seu clima é de umidade pesada, e tanto que é possível sentir sua companhia quando caminhamos entre suas pilastras lenhosas, sustentando telhado infinitamente verde. Muita água. Água de um regime de chuvas atordoante e ininterrupto. Água armazenada em raizes. Águas em cipós. Água. Água. Água. O elemento natural, vassalo do reino do verde. Um verde que cansa e perturba como o branco do gelo das regiões glaciais.
Algumas estórias sempre trazem em si um componente comum que é a própria natureza, de onde as lendas populares retiram seus principais personagens originados do medo e da insegurança constante. A Amazônia em si é repleta de mistérios por todos os lados, onde a vida e a morte são fatos nem mais nem menos corriqueiros como sol e chuva, noite e dia. Nela todo ser vivente sabe que talvez não esteja respirando na próxima hora porque em um átimo pode ser transformado de caçador, em alimento. Nela, como em qualquer lugar, a fome é uma caracteristica comum a todos os seres vivos, e singular dessa imensidão verde. A Amazônia é um bioma que consome a si próprio e reaproveita tudo para preservar sua química e seus minerais básicos. Um projeto perfeito, criado para se perpetuar por milhões de anos, onde nada se perde e tudo se transforma. Seu único empecilho é a desmedida ambição humana. A Amazônia se recria, desde que não sofra a intervenção da rapinagem humana, que depreda desnecessariamente. Se agisse como a natureza o homem saberia que o manejo correto, muito bem permite o uso desses recursos e insere o ser humano na própria natureza como parte integrante dela.
Na amazonia se morre fácil, ou por fome ou por defesa. Mas a morte por agressão ou predação nunca é gratuita. E esta é a lição mais digna desse inferno verde: nada morre por morrer, e tudo o que venha a falecer por causas naturais ou luta pela vida, transmuda-se na força de outras espécies que precisam da morte pra continuar vivas. Assim, viver na amazonia é viver em alerta constante. Cada árvore é uma armadilha a carregar peçonhas ou tocaias de dentes afiados e famintos. Cada vão ou abertura de qualquer tamanho nos madeiros mortos caidos em meio a sua intrincada composição de cipós, árvores e inúmeras espécies vegetais, pode significar o fim a todo vivente que se aventure por ela. Ataques precisos vindos desde minúsculos batráquios, repteis e aracnídeos até grandes animais carnívoros, serpentes venenosas ou constritoras, que raramente falham na sua especialização da morte.
Daí é que sobrevêm todos os mistérios e lendas desse povo. O constante perigo que o cerca é o fator responsável por essa imaginação fértil que amplia a realidade dos seus riscos, formatando outros seres surpreendentes, como se já não bastassem os inúmeros inimigos naturais de suas lidas diárias.
É o caso do caso que conto.
Caso que traz um desses personagens fantásticos, que na extensão magnífica dessas estradas de águas é lembrado aqui e ali pelos moradores ribeirinhos. Para contá-lo, tomo de favor os préstimos de Belmiro Bonfim, alcunhado de “boca”. Um mameluco prosa, moreno e forte, conhecedor das manhas e artimanhas das matas e dos rios, de onde tira o sustento e iguarias de sabor refinado ainda desconhecidas por esse Brasil afora. Tomo os favores e as palavras, que do “boca” saem calmas e corrediças como as águas que nos passam à frente.
Conheci Belmiro após aportar no seu pequeno povoado ribeirinho, durante longa viagem de pesquisa e conhecimento por essa amazonia afora. Enquanto os companheiros da jornada cumpriam suas missões nas mais diversas intenções científicas, uns catando sementes, outros vegetais e outros ainda aprisionando mosquitos para posterior estudos, eu catava estórias. E catei muitas. E tantas que me permito selecioná-las e repassar apenas as mais saborosas.
Já passava das cinco da tarde quando desci com Belmiro para a pequena praia fluvial onde havíamos aportado o barco no dia anterior e onde ele prometera relatar a surpreendente estória da menina das águas. Para descer a barranca era preciso cuidado, pois o caminho, além de íngreme, era feita em terreno umedecido, ora terra molhada, ora pedras cobertas de limo verde e extremamente escorregadio. Como única segurança, um improvisado corrimão, completamente bambo, feito de estacas verticais e ripas horizontais. A um pequeno descuido , queda na certa. Um tombo cheio de riscos, cerca de cinco ou seis metros abaixo.
Quando chegamos ao nível do rio o cenário era de uma beleza indescritível. O sol ainda inteiro e vermelho já descia lentamente esperando apenas que a lua lhe rendesse o turno. Nuvens espargiam manchas de tons alaranjados, vermelhos e púrpura como uma imensa obra de arte, ricamente pintada sobre um tecido azul. Por entre algumas era possível ver fachos de luzes retilíneos como spots gigantescos, a iluminar esse diáriamente diferente show do ocaso amazônico. Um pôr–do-sol belíssimo que nos remetia a uma contemplação calma e silenciosa. O espetáculo se estendia para dentro do rio onde, vez por outra, víamos um dorso de boto a corcovear sobre as águas, ou um peixe saltando desesperado para fugir de algum predador.
Éramos apenas nós nessa imensidão. Eu, Belmiro e a natureza no esplendor de sua festa. Enquanto ela executava sua maravilhosa performance, apenas nos cabia a visão e a admiração, sem que fosse pronunciada uma só palavra. Ficamos assim algum tempo, mudos e quietos, apenas mexendo os pés na areia quente e fina da praia do rio. Quando a borda inferior do grande astro já roçava a mata verde, Belmiro iniciou o seu relato, devidamente acomodado ao meu lado em um tronco sem vida, mas ainda cheio de dignidade.
De repente Delmiro resolve falar sem antes colocar em prática um cacoete que o acompanha desde criança. Sem aviso prévio ele introjeta os lábios dentro da boca mordendo os dois. Logo em seguida os solta fazendo um ruído de bolha estourando. Esse deve ser o porquê de sua alcunha de boca.
Eis a narração de Delmiro.
“ ...pois faça atenção seu moço” disse ele enquanto tirava um cigarro da aba da orelha...
“...vou contar apenas porque o amigo parece pessoa séria e diferente dessa gente que por aqui chega, ouve nossas conversas e saem a caçoar por aí afora”. Delmiro para um pouco, bate o cigarro na unha do polegar e o leva à boca. Para buscar o fósforo dentro da algibeira foi preciso inclinar o corpo até encostar em mim o seu braço nu e sem camisa, deixando perceber nesse simples toque a massa muscular poderosa que os remos, os facões e os machados haviam lhe proporcionado.
Aceso o cigarro e entre baforadas, Belmiro continua sua narrativa.
“...primeiro é preciso que o moço firme os olhos naqueles troncos retorcidos da outra margem, onde o rio faz um remoinho e depois inicia seu caminho lento rumo àquela curva pra direita...
...pois foi exatamente lá que se deu o meu único encontro com a menina das águas.
Vinha eu remando contra a correnteza, que por aqui não é tão mansa como parece, quando me deparei com a criatura. Uma morena que era um deslumbramento, com aparencia de não mais que vinte anos e panos rotos porem limpos a lhe cobrir o corpo e as partes. A porção de cima do que vestia era de um tecido azul e transparente e brilhava refletindo o sol do meio dia. O que impressionava era o que se escondia por baixo dele. Pois seu moço, eram os seios mais lindos que já vi, se comparados a qualquer beleza que meus olhos já tenham visto. Saltavam do corpo com atrevimento e terminavam em bicos carnudos que queriam porque queriam a liberdade tolhida pela blusa: o tal pano azul e brilhante apenas amarrado na nuca e nas costas um pouco acima da cintura. De vestido usava outro de cor muito branca, cuja textura se assemelhava aos tecidos de ensacar o açucar, também amarrado toscamente na cintura. Era uma mulher linda. Seus cabelos eram negros e brilhosos como os das índias e um par de olhos azuis pareciam o céu em dias quentes e sem nuvens. Daqueles em que a natureza vaidosa se faz mulher e se maquia inteira para chamar nossa atenção. Pois ficou a pergunta: de onde uma morena dessas, com a pele achocolatada das índias teriam conseguido olhos assim? Mais tarde fiquei sabendo. O moço vai saber tambem quando terminarmos nossa história.
Pois bem, a moça ao me ver pareceu tomar um susto e fez menção de se levantar de onde estava sentada .
_Venho em paz -gritei da canoa - e apenas paro porque nunca estes olhos viram tanta formosura.
A menina das águas esboçou um leve sorriso e permaneceu imóvel com seus olhos perdidos no tempo.
_ Posso me achegar apenas com a tenção de nunca mais esquecer este dia?
Perguntei esperando um fria negativa.
_Pois se achegue e se sente. Mas se comporte. Não se fie muito no que os vossos olhos estão vendo.
Eu juro a vosmecê que não entendi essa parte. Mas do jeito que foi dito, foi ouvido e esquecido, pois a atenção deste caboclo estava voltada para a mulher mais pefeita que já se viu. Após ter dito isso a moça voltou novamente à contemplar as águas do rio e ficou assim até que resolvi quebrar o silencio.
_ O que a moça olha tanto nessas águas sujas próprias dos tempos das cheias?
A resposta soou como poesia de tão linda.
_ Águas nunca se sujam amigo canoeiro. Elas levam terras e alimentos para outras paragens. É isso o que o forte mateiro chama de sujeira. Mas preste muita atenção nas nuvens que circulam sobre vossa cabeça. Vez em quando a água sobe até elas e lá tomam seu banho divino e retornam novamente limpinhas a cumprir sua missão de vida.
Ela olhou para o céu e eu olhei tb. Nesse momento seu moço uma chuva suave caiu sobre nossas cabeças. Eu senti ums arrepios estranhos e a criatura percebendo o meu medo me acalmou:
_ Se assuste não. A chuva que caiu, caiu mansa e se caiu mansa é porque é do bem. Mal não há de fazer.
Nesse exato momento umas quatro dezenas de botos surgiram no rio e se levantaram como em filas militares e com o corpo todo fora da água, ficando assim perfilados por uns 10 segundos. Outros bichos também se uniram a esse estranho cortejo. Quatro ou cinco “pintadas” sairam das matas, e através das águas pude ver o dorso de imensas gibóias ziguezagueando por entre os botos. Pareciam soldados a aguardar uma ordem de ataque.
_ Seres das águas e das matas continuem suas sinas. Aqui tudo é paz- disse a moça.
Ao dizer isso a guarda animal se desmanchou por completo e em um piscar de olhos tudo voltou ao normal.
Medo não define exatamente o que se passou pelo meu corpo e pela minha cabeça. Era pavor, era cagaço, era uma covardia sem limite. Eu não imaginava como tais fatos chegariam ao fim, mas presumi que havia caido em uma das grandes armadilhas do caapora e que meu corpo a qualquer momento estaria sem vida, depois de ser esquartejado e humilhado por tanto poder.
Mas não. O fim desse encontro foi suave. A menina das águas pegou a minha mão direita e invadindo minha alma com aqueles olhos que pareciam feitos de pedra preciosa disse calmamente:
_A partir de hoje acredite no que seus olhos não podem ver. E com essa fé ajude a preservar essa maravilha que Deus entregou a todos. Não permita, canoeiro, que os inimigos da natureza estraguem com suas ambições tudo o que a mãe natureza levou milhões da anos para construir. Prometa isso...
A palavra “prometo” saiu balbuciada destes labios que no momento estavam pálidos e trêmulos.
As últimas palavras da menina das águas foram:
_ Agora eu me vou. Preciso cuidar do meu destino.
Em seguida desapareceu como se nunca houvesse existido.
Seu moço, quando terminamos o encontro eu corri como o diabo para a canoa e remei tão depressa que quando dei de fé já estava encostando bem aí na nossa frente com o coração saindo pela boca. E olhe que daqui até a curva do rio são quase mil metros e posso garantir que não vi nenhum deles passando por baixo de minha canoa, enquanto remava.
Aqui Belmiro faz uma pausa na história. O seu semblante mudara totalmente. Do moreno safo que a mim fora apresentado por alguns moradores do local, nada restou. Seus olhos estavam hiperativos movendo-se rapidamente de um lado para o outro, parecendo querer ver todos os ângulos ao mesmo tempo. A aparência do rosto mostrava um estado de tensão e tristeza, querendo caminhar em pouco tempo para o chôro. E foi exatamente o que eu vi. Lágrimas brotaram dos seus olhos e nesse momento suas mãos cobriram suas faces num ato de preservação de sua dignidade. Seu tronco curvou-se até a cabeça se encaixar em meio às suas pernas. Delmiro não queria que eu participasse desse seu momento de fraqueza.
Eu esperei com calma até que a explosão terminasse.
_Se acalme Delmiro. Uma história com boniteza assim não pode terminar em choro- a frase me saiu sem pensar e como um tiro pela culatra provocou uma reação inesperada no canoeiro....
_ Não pode amigo meu? Não pode? O coração que bate no meu peito não é o que bate no seu. E as tristezas que ele sente não poderão jamais ser sentidas por vosmecê. Aqueles olhos seu moço me perseguem desde aquele momento.- continuou Delmiro-. _ Eu os vejo me espiando por traz dos grandes troncos da mata, enquanto preparo minhas armadilhas de caça, nos meus sonhos ...a cada segundo da minha vida. Nada faço sem que eles estejam presentes.
_É amor Belmiro? Perguntei querendo retirar dele mais emoções ainda.
_E não é amigo velho? O visitante aí não sabe do que são capazes os espíritos bons e maus que vivem vagando pela floresta...Belmiro disse isso com um ar resignado, querendo mostrar o sofrimento que os habitantes das matas enfrentam.
Eu preferi o silêncio. Ficamos assim por longo tempo até que toda a emoção se esgotasse do semblante de Belmiro. E quando percebi que tudo voltou à calma perguntei:
_ E os olhos azuis Belmiro?
_Essa é a outra parte da história seu moço. Conto amanhã. A cara metade deve estar terminando a janta e se dana se não chego no tempo certo.
Gostei da idéia.
No nosso barco já haviam me dado sinais da bóia pronta, coisa que o meu estomago já vinha fazendo a algum tempo com a fome que a natureza provoca. Marcamos o início de nossa conversa para o começo da manhã seguinte, nos despedimos e Belmiro subiu novamente o barranco rumo à sua casa.
(continua...)
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