POIS É, PRA QUE?
Sidney Miller foi um compositor relâmpago, que passou rapidamente por este mundão brasileiro, não gostou e foi procurar em outros planos um lugar melhor para expor toda a sua sensibilidade. Morreu novo. Morreu com 35 anos, mas deixou sua marca na MPB com algumas composições maravilhosas, por uma densidade deliciosa de letra e música. Uma delas é a instigante “Pois é pra que?” , onde o compositor mostra a desnecessidade da rebeldia, em uma crítica contraria e coerente aos que não fazem nada ou não tomam atitude nenhuma.
Vamos à primeira estrofe da letra para que seja possível entender um pouco dessa obra prima: O automóvel corre\ a lembrança morre\ o suor escorre\ e molha a calçada\ a verdade na rua \a verdade no povo\ a mulher toda nua\ mas nada de novo\ a revolta latente\ que ninguém vê\ ninguém sabe o que sente\ pois é, pra que?
Sidney tinha razão. A verdade na rua, a verdade no povo. A revolta latente que ninguém vê. Sidney foi esquecido, mas não morreu. É atualíssimo. Pronto pra ser usado nos dias modernos da comunicação imediata, do “ficar”, dos amores sensuais e imediatistas, da insensibilidade e do distanciamento humano. Porque dessa canção emerge a pergunta, que martela, que tenta perfurar a parte mais dura da nossa consciência, tentando fazer com que uma nova visão se instale nos olhares despercebidos do nosso tempo.
Pois é, Pra que? A polícia prende a justiça solta. O ministério público acusa, o poder econômico inocenta. A investigação levanta as provas, robustas, consistentes e a mentira prevalece. O elemento - como diz o jargão policial – é preso em flagrante delito, com arma em punho, reconhecido por testemunhas, e alguns dias depois é visto caminhando faceiro em plena liberdade e até no mesmo bairro onde praticou o crime.
Pois é, pra que? Pra que o aparato de juntar as inteligências de juristas preparados para julgar um processo, repleto de provas poderosas, de depoimentos e de testemunhas? Pra que obrigar um relator a expor quase cem páginas, todas elas alinhavadas com precisão, na intenção de trazer â luz da justiça o entendimento de todos os fatos, em uma cronologia quase matemática e exata? Pra que obrigar esses magistrados a comentar suas decisões de voto e concordar com todas as letras de tudo o que foi relatado? Pra que a sentença? Pra que?
Pra que cassar diplomas de quem pratica os atos mais mesquinhos do embate político, sendo que a sentença desses crimes é desrespeitada e tudo continua como dantes? Pra que a prisão de assassinos enganadores de uma sociedade inteira com identidade falsa, sendo que lhes são permitidas as graças dos habeas corpus, e da liberdade proveniente da litigância em proveito próprio?
Sidney Miller continua: “ A fome a doença\ o esporte, a gincana\a praia compensa\ o trabalho a semana\o chopp o cinema\ o amor que atenua\ o tiro no peito\ o sangue na rua\a fome a doença\ não sei mais porque\ que noite que lua\ pois é pra que?
Pra que lei seca tão rigorosa se os bêbados continuam atrás dos volantes céleres e endiabrados, fazendo vítimas nas calçadas, nos pontos de ônibus, e dentro de residências? Pra que verbas para a saúde, se elas nunca chegam ao seu destino visto que os hospitais mais parecem depósitos de carne humana, contaminados e mau cheirosos? Pra que verbas de educação, se os professores e os alunos continuam em pleno sofrimento, frenquentando escolas apenas pela miserável merenda escolar? Pra que leis de proteção ao menor, se a verdadeira lei que os protege é a ditada pelo tráfico ou pelo sistema prisional, este o maior formador de bandidos no Brasil? Pra que condenar Presidente de Assembléia sendo que ele continua gozando de total liberdade?
E Sidney encerra: No fim do mundo\Tem um tesouro\Quem for primeiro\ Carrega o ouro\A vida passano \meu cigarro\Quem tem mai pressa\Que arranje um carro\Prá andar ligeiro\Sem ter porque\Sem ter prá onde\Pois é, prá que?
E eu termino: pois é, pra que?
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