segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

CANALHA

Descendo pela rua da direita, que passa bem em frente à uma praça toda pintadinha de branco,e do lado esquerdo de quem caminha para a rua da feira, todos se deparam com uma sequência de ruinhas estreitas e paralelas, que nos primórdios da cidade, serviam de paradas obrigatórias de tropeiros. Uma delas chama-se Rua do Prego, nome originado de um brechó que ali existe de longa data, cujo proprietário, um turco chamado Rachid, se tornou uma figura lendária, admirada e muito amada por toda a comunidade.

Rachid começou seu negócio trazendo cacarecos das grandes cidades e, com seu jeito especial e habilidoso de comerciante, foi ampliando, renovando e inovando sua idéia inicial, até que hoje a CASA RACHID- nome do empreendimento exposto em letras imensas na fachada -, já , pode se dizer, se tornou praticamente um grande bazar bem à moda turca, repleto de utilidadades.

O slogan do negócio “ A CASA DOS AMIGOS”, define muito bem o comportamento desse descendente da imigração árabe. Rachid negocia de calcinhas femininas a motoserras, passando por eletrodomésticos, tecidos, utensílios e até uma pequena drogaria . Hoje a empresa faz parte do dia a dia de toda a população de Ceresópolis e, definitivamente, o primeiro endereço de compras a vir na memória. Não existe nele nada que um cristão procure e não ache. A aparência bagunçada guarda uma certa organização, visto que letreiros informam os produtos existentes nas prateleiras, ou espalhados pelo chão e ainda pendurados no teto do espaço comercial dirigido pelo habilidoso turco.

Rachid também é agiota. Mas um agiota do bem. Dá a impressão que empresta dinheiro para socorrer os que se encontram em situação difícil e com juros muitíssimo abaixo dos que são praticados no mercado. Seus empréstimos nunca ultrapassam a quinhentos reais e todos são feitos com garantias. E que garantias !

Aceita panela de pressão, roda de carro, ventilador e tudo quanto é quinquilharia. Aceitou até um marlin azul esculpido em madeira que hoje enfeita o seu bonito escritório. A obra de arte foi pega para assegurar o pagamento de alguns reais, emprestados a um coitado qualquer que não pôde honrar o compromisso.

Era fácil tomar esses pequenos “ajutórios” das mãos de Rachid. Mas a condição era clara: o não pagamento no prazo combinado, fazia com que o objeto fosse colocado imediatamente à venda, em um espaço chamado USADOS RACHID.

E essa sempre foi a melhor parte do empreendimento. Uma infinidade de artigos de segunda mão ofertados. Um pouco de paciência e uma boa pesquisa resultava sempre em um bom negócio. E tome carretéis de pescaria, livros, materiais escolar, rodas de carro, fogões, geladeiras e outras centenas de itens. Eu já encontrei um perfume Francês faltando dois dedos do líquido. Comprei na hora.

Ao lado do já bem sucedido negócio do turco, existe uma porta deixada cerrada, mas sempre aberta. É a única casa não ocupada pelo comercio do turco no lado esquerdo da rua do prego, que hoje invade todo o quarteirão. A fachada verde, já carcomida pelo tempo, é cheia de feridas que a idade costuma deixar em tudo que é velho , e expõe um estilo de construção colonial, onde se vê um portal alto de madeira e do lado direito, uma janela com um beiral feito de ferro e já todo enferrujado.

A alma boa do árabe tem um motivo especial para não trancar a porta da tapera: ela serve de morada eventual para Canalha, um desses tipos estranhos que perambulam por todas as cidades e que não têm eira nem beira.

Canalha mora exatamente na rua do prego. As vezes deitado sobre alguma sombra de marquise, outras vezes parado e olhando pro nada, como se visse alguma coisa lá pras bandas donde a vista da sanidade não enxerga.

Em seus momentos calmos todas as emoções parecem lhe aflorar no rosto. Franze o cenho como que com ódio; ri sarcasticamente balançando a cabeça como se duvidasse de algum fato; Chora copiosamente um choro de soluços sentidos, na maioria das vezes consolado por algum passante já acostumado com ele. Doutras vezes conversa sozinho animadamente, como se estivesse em grande roda de amigos, para depois se deitar com a cabeça sobre um saco de quinquilharias, mansa e calmamente, como se uma grande inocência lhe invadisse a alma. E assim passa algumas horas, até que a vigília de um outro mundo venha a lhe acordar novamente.

As vezes Canalha surta. E esse é o seu lado mais assustador.

Ergue-se do chão num repente e começa a pular e fugir do que, na visão dos passantes, parecem golpes desfechados contra ele. As duas mãos entram com vigor nessa batalha imaginária e ficam afastando do corpo, estocadas vistas só por ele mesmo. Canalha pula... se debate... se abaixa. ..algumas vezes fica de cócoras com a cabeça escondida entre as mãos e as pernas, dando mostras de um pavor imenso. Em seguida levanta-se novamente pra enfrentar a pendenga e corre e dá pinotes em uma pantomima hilariante se não fosse trágica.

De repente para. Parece que, como por encanto se desse o fim da terrível briga, e o inimigo se afastasse.

Nesse momento começam os impropérios. Esbraveja aos berros palavras ininteligíveis olhando para o alto. Aponta para o céu, ameaça, e finalmente começa a liberar seu maior grito de guerra :

---CANALHAAAAAAA! CANALHAAAAAA! CAAAAAAAAAAAANAAAAAAAAAAAALHAAAAAAAAAAAAAAAAA!

Essa é a última parte desse show deprimente. A explosão final que sempre pareceu lhe minar todas as forças. Após esse ultimo xingamento Canalha sempre estanca quieto e inerte. Depois, e aos poucos, flexiona o joelho até se sentar sobre os calcanhares. Em seguida e ainda de cócoras, apenas vira o corpo como se perdesse os sentidos e cai de lado em profundo sono nessa posição fetal. Parecia que uma ordem superior provocasse o seu desmaio.

Terminado o surto, era a vez de entrar em cena a alma bondosa de Rachid.

Rachid senta-se ao seu lado e parece susurrar palavras de conforto àquele martírio. O turco segura a mão do sofredor, levanta-o com o braço por baixo de sua cabeça e faz com que ele beba um copo de água. Quando percebe que está tudo calmo, fica de pé e sai balançando a cabeça, manifestando tristeza.

Eu me tornei amigo de Rachid por ser representante comercial. O sujeito já quis até me empurrar uma sobrinha bonita necessitada de casamento. Várias vezes aceitei seu convite para participar das faustas mesas que oferece a amigos, em datas especiais ou fins de semana. A companhia é agradabilíssima e a conversa roda sempre recheada de boas gargalhadas.

Um dia Rachid me contou o sofrimento de Canalha. Contou que Canalha é seu primo, filho único de pai e mãe mortos em uma febre estranha que se abateu na cidade. Contou também que Canalha já foi gente de bem, dono de casas, terrenos e uma pequena fazenda nos arredores do município.

O primeiro golpe terrível acontecera com a morte de dois filhos, por uma descarga elétrica que se abateu exatamente na árvore onde as crianças brincavam. Os meninos foram tostados e viraram pequenos fardos de carvão em caixões lacrados, para que ninguém visse suas pavorosas imagens.

Um par de ano depois foi a vez de sua única filha. Morreu sem socorro, entalada por um pedaço de carne dentro de casa, sem que ninguém visse.

A última a partir foi sua esposa. Perdera Aminad e uma outra filha no momento do parto. Rachid em seu minucioso relato dá conta de que o médico, após o óbito da querida esposa, e, tentando amenizar um pouco o tamanho da desgraça dissera que Aminada e Sara, foram levadas por Deus.

Conta também que nesse momento Canalha perdeu o chão. Correu em desespero pra fora do hospital e desapareceu por quase uma semana. Quando deu as caras estava roto, sujo e completamente fora de controle. A família tentou varias vezes a recuperação com inúmeras internações psiquiátricas, sem qualquer resultado.

Depois todos foram se afastando, até que só restou ele mesmo. Conta também que dentro da casa verde, Iussef – alcunhado Canalha - tem todo o conforto. Tem geladeira, fogão, cama, televisão e tudo. Mas nunca dorme dentro do imóvel. Prefere se deixar solto nas ruas, na crueldade da solidão que deve ser o mundo dos insanos.

Depois de ouvir os relatos de Rachid eu tive uma certeza: nos seus malabarismos de rua, Canalha se defende de demônios e, com impropérios, manifesta o seu mais terrível e imenso ódio a Deus.

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